Nascido em bairro de lata, cabelos revoltos, quase negros, olhos de amêndoas-doces, castanhos, pele encardida cor do bairro, tez morena de cigano. Traquino, corria tudo. A mãe, encharcada em roupas sujas de oficina gritava o seu nome, mas ele voava no eco da voz materna, travesso.
Sem brinquedos, parava o corpo gaiato frente às montras, quando a mãe o levava à feira. Sonhava animais de corda. Ao chegar ao bairro, assustava toda a bichanada fugitiva das suas mãos: nos pobres gatos inventava brinquedos. Miavam pelos bigodes e pelas caudas. No entanto, não se revoltavam porque sentiam a mansidão da sua alma infantil. Os donos que viam tais cenas, acercavam-se e blasfemavam palavras indecentes, batiam-lhe, puxavam-lhe os caracóis, corriam-no a pontapé. Indefeso, limitava-se a sorrir porque não tinha feito mal algum. Olhavam então os seus olhos ingénuos dizendo-o descarado. Encolhia os ombros despreocupado e descia as ruas pedregosas saltitando, ora num pé, ora noutro.
O pai chegava tarde da oficina, noite alta. Com a doçura de uma pomba chegava-se ao homem taciturno, empedernido.
- Vai-te! Não me chateies!
Especado, olhar sorridente, meiguice no corpo, ficava olhando o pai... tão ao longe!...
- Deita-te! Merda de vida!
Obediente, enroscava-se na enxerga quase colada à dos pais. Antes de adormecer olhava, um a um, os buracos húmidos da barraca, as aranhas, que teciam lindos fios por todo o lado, e os bichinhos da humidade, passeando preguiçosos pelo chão. Para adormecer, inventava da cama um cavalo e em lengalenga começava a cantar:
Cavalo-cavalinho
rápido, rápido
leva-me à nuvem
quero ir alto...
- Porra! Não te podes calar? - interrompia o pai.
- Posso... - dizia baixinho.
- Então pára senão já sabes... - e mostrava o cinto preto que saía das calças.
Tentava adormecer. Olhava a mãe arrumando os poucos restos. Era tão bonita!... Tinha o cabelo comprido amarrado sem cuidado e sem tempo, embaraçado, cheio de riscos brancos, a cara sempre triste.
- Mãe, porque nunca ris? - perguntava quando ela lhe ia aconchegar o cobertor de buracos. No silêncio, a sua mão grossa e áspera acariciava-lhe a face.
Estava quase a dormir quando a enxerga dos pais começava a ranger - ouvia urros de macho enfurecido, ouvia ais lastimosos de resignação. Tapava os ouvidos e cantava só na cabeça:
Cavalo-cavalinho
rápido, rápido
leva-me à nuvem
quero ir alto
o vento me leva.
Cavalo-cavalinho
rápido, rápido
leva-me ao sol
quero ir alto
e sonhar
um sonho lindo...
Escassos cantaram os galos lá fora... A mãe levantou-se. Apressada, aqueceu o café de cevada diluído e cortou um naco de pão para o seu homem, que tragou tudo dum só golo. O filho viu-o ir, sentado na cama com olhar saudoso. A mãe voltaria tarde e cansada das lidas nas casas dos outros, como de costume. Sozinho entre a multidão do bairro sentia-se flutuar. Se quisesse descer até ao solo não conseguiria. Deixou os gatos em paz. Na azinhaga roubou uma laranja ao merceeiro. Coxo, trôpego, tentou correr até à rua e esganiçado rogou-lhe pragas. Ladino, fugiu a correr mais a laranja - se ele tinha tantas que falta fazia aquela? Sentou-se sob uma árvore cheia de sol, dentando o fruto sumarento. Passeou livre pelas ruas. Parava olhando os fatos bem parecidos que caminhavam a seu lado sem o verem.
- Dê-me um tostãozinho! . . .
O velhote sorriu-lhe. Acenando a cabeça acariciou-lhe os caracóis. Feliz, disse-lhe adeus, meteu as mãos nos bolsos e brincou com os buracos rasgando-os. Como não soubesse o que fazer, continuou a andar no sentido do velhote. Os semáforos ficaram vermelhos. Os carros chiaram. Os peões apressavam-se em todos os sentidos. Ao olhar para o lado, o velho viu o miúdo.
- Olá! Ainda aqui andas? À caça de tostões?! Mas olha que não te dou!...
- 'tá bem, tam'ém não quero!
- Então, para onde vais?
- Por aí!
- Os teus pais?
- Hum!... O Pai só volta à noite... e a Mãe tam'ém! Foram trabalhar...
- Quantos são vocês lá em casa?
- O Pai, a Mãe e eu.
- Onde vives?
- Pr'ali, sempre em frente, no sítio com casas feias.
- Porque pedes dinheiro às pessoas?
- P'ra comprar um gato de corda.
- Um gato de corda?!
- Sim! Lá pessoas têm gatos. Elas batem a eles e eles miam. Ós pois vêm bater a mim porque acho que eles têm corda e pego no rabo deles e rodo os bigodes. Eles miam. É a brincar, mas os homens e mulheres chamam-me diabrete e batem-me. Assim, quando eu tiver um gato de corda, nunca mais vão bater a mim!
- Queres um bolo?
- Não senhor!
- Não gostas?
- Gosto!
- Então porque não queres?
- Não gosto de pedir coisas às pessoas que conheço.
- Tu conheces-me?!
- Sim!
- Bem, mas tu pediste-me algum bolo?
- Não...
- Então anda daí!
E foram rua fora. Caminhavam silenciosos. De vez em quando saltitava nas pedras brancas e pretas da calçada e o homem sorria divertido, porque o miúdo mais parecia um pardalito. O garoto olhou para trás e para cima com as suas amêndoas-doces brilhantes e sorriu de manso... O velho aproximou-se, enrolou-lhe os caracóis e lá foram abraçados. Numa mercearia envelhecida comprou um pacote de bolos baratos, com as sobras da mensalidade da reforma. Andaram um pouco mais e sentaram-se no jardim. Lado a lado, dividiram os bolos.
- Senhor, a Mãe, às vezes vai à igreja e o padre fala coisas assim. . . de um Deus... e de um outro mau. O Pai bate-me, não sei porquê, mas a Mãe diz que ele é que sabe porque é grande e forte. Às vezes bate a ela tam'ém e ela chora. A mãe diz que eu sou mau porque puxo os bigodes aos gatos - mas é a brincar! Os outros rapazes às vezes são muito maus e eu bato a eles, depois, eu tenho mais força e as pessoas chamam-me diabo e diabrete. A mãe diz que o padre conta p'ra gente, lá naquela coisa, que as pessoas más vão com o Diabo p'ro Inferno e as boazinhas vão p'ro Céu. Ela diz que eu sou mau! Senhor, porqu'eu vou p'ro Inferno? Eu sou pequeno! Porqu'eu não posso brincar? Deus não brincava quando era pequenino?
- Filho - disse meigo o homem, pegando-lhe na mão - vou contar-te uma história:
"Deus era um homem grande e forte. Gostava muito de crianças e foi buscar todos os anjinhos bons e bonitos que conhecia. Gostava de ver as crianças a brincar, a correr, a pular, a gritar. Só que os anjinhos bons eram muito sossegados. Deus estava cansado de trabalhar o dia todo na sua nuvem. Quando descansava do trabalho ficava triste, porque todos os anjos-meninos ficavam parados à espera que ele passasse. Não falavam senão quando Deus lhes falava, não sorriam senão quando Deus lhes sorria, não brincavam para não fazer barulho à porta do Deus-pai. Então, ele começou a achar o Céu muito triste. Um dia foi bater à porta do Inferno:
- Diabo, guardas aqui meninos castigados pelos pais?
- Sim, mas porque vens aqui?
- Para que os queres cá?
- Para nada. Só que os puseram aqui, mas as crianças, mesmo as piores, são boas demais. Leva-mas!
Feliz, Deus-pai levou todos os diabretes ainda vestidos de vermelho para o seu reino. Escandalizados, os anjos e anjinhos, todos de branco, fugiam e benziam-se dizendo que era o fim. Deus ralhou-lhes por não amarem as crianças. Pegou nos diabretes ao colo e disse-lhes:
- Meus filhos, brinquem à vontade!
Os diabretes viviam felizes sem castigos. Corriam o dia todo, gritavam alegres, chilreavam tontices, batiam durante o dia à porta do Deus-pai: ele punha de lado os óculos, descansando neles a vista cansada, abria-lhes os braços e ficavam longo tempo a conversar. Saciados, deixavam-no em paz ou abraçavam-no quando ele estava triste.
A partir de então, o Céu passou a ser colorido. A chuva passou a ser mais doce, o vento mais meigo, o sol mais lindo. No firmamento os homens viam os arco-íris cruzando-se: eram os diabretes que inventavam brincadeiras de ilusão."
- Senhor, posso tratar-te por "tu"?
- Claro, filho!
- Como te chamas, Senhor?
- Manuel.
- Eu sou Paulo!
- Até amanhã, Paulo! Os teus pais devem estar a chegar.
- Adeus, até amanhã, Manuel! Amanhã contas-me outra história?
- Conto! Quando puderes vem ter comigo... logo que possas!
- 'tá bem!
Beijaram-se num abraço.
Paulo correu mais veloz do que nunca, calado para não irritar os pais, guardando no coração todo o açúcar das palavras para o seu querido velho Manuel...
No dia seguinte, assim que os pais saíram, correu azinhaga abaixo. No jardim, os cabelos brancos esperavam-no. Os olhares penetraram-se.
No colo do velho solitário a cor vermelha das rosetas infantis ouviam histórias fantásticas...
No chão, um gato de corda rodava sozinho. . .
24.04.1981
(24 anos)